Ele lava a louça

Nada de angústia, chateação, fraqueza ou desanimo. Pura obrigação: acaba de comer e para não ter que lavar tudo de uma vez, lava o prato na hora. Se deixar, come a comida direto na panela, assim evita o esforço de ter que sujar (e lavar) o prato.

Cuidados com as mãos passam longe, claro. Afinal, homem é homem - nem comprar um filtro solar eles sabem.  Pior ainda quando é gamer e não consegue ler FPS como Fator de Proteção Solar, mas sim como First Person Shooter.

Quando pequeno, ouvia a mãe conversar com a empregada na cozinha. Não dava a mínima. Motivo? A cara grudada no Mega Drive. Sonic The Hedgehog 2 comendo solto - e ficava puto da vida quando morria no último chefe e tinha que começar de novo.

O garotinho cresceu. A Sega faliu e, com ela, foi-se o tempo de seus consoles. Mas a paixão por games continuou e foi substituída por um Playstation. Ceder à Nintendo, maior concorrente da Sega na época? Jamais.

Algumas vezes chegava do colégio e tinha que fazer a própria comida. Normalmente era macarrão instantâneo - e quase sempre comia na panela mesmo. Lavava tudo para não ser xingado pela mãe e, com o tempo acostumou. Ainda assim, lava pouco a louça.

Certa vez, já após a maior idade, estava lavando a louça numa quinta-feira à noite. Seus pais estavam em casa - o pai cochilava no sofá e a mãe falava ao telefone com sua tia. Em um descuido, deixou escorregar um copo de vidro e, por puro reflexo, tentou pegar o copo com a mão ainda no ar. O copo estourou ao bater na pia e sua mão foi inteira cortada. Sangue.

Já havia se machucado outras vezes, ao longo de seus, até então, 20 anos. Talvez de forma um pouco mais violenta. Calmamente, colocou a mão embaixo da torneira para lavar seus cortes e verificar o tamanho do estrago.

O alívio foi que a maioria era pequena - já havia sido cortado de forma mais violenta por folhas de papel sulfite. Mas um dos cortes deixou ele espantado e, ao mesmo tempo, admirado com sua bravura. Era um corte grande, um pouco abaixo da palma da mão. A maioria do sangue saia por ali - tirava a mão debaixo da água corrente, sangue. Colocava, o sangue continuava saindo - a água só diluia.

O pai, que acordou assustado com o barulho de vidro estilhaçando, foi ver o que aconteceu. Viu o filho tentando estancar o sangue do corte com um pano de prato. Entrou em pânico e correu para se vestir. A mãe, assustada com a reação do pai, foi ver o que tinha acontecido. Surtou ao ver o filho com a mão cortada e sangue escorrendo pelo pano de prato. Correram para o pronto socorro do hospital mais próximo.

Chegando na ala emergencial, foi questionado pelo médico como o ferimento foi feito. O garoto respondeu, pois os pais estavam visivelmente preocupados e não sabiam o que aconteceu, de fato. O garoto estava calmo, até demais. O médico parou com as perguntas, limpou o ferimento e suturou o corte - seis pontos. Deveria ficar com essas pontos 15 dias, até cicatrizar totalmente.

No dia seguinte, o garoto inventou de jogar video-game - afinal, se podia trabalhar, podia se divertir à sua maneira. E foi assim na sexta, no sábado, no domingo e na segunda. Tirou seus curativos na terça-feira, ficou com os pontos expostos. E então, jogando video-game na terça-feira... O controle do video game quebrou. Na sua mão. E, para completar, um pedaço de plástico entrou justamente onde foi o corte, abrindo-o novamente.

Corre para o hospital, novamente. Dessa vez, tomou uma bronca do médico: você não deveria jogar video-game com esses pontos na mão. Pontos refeitos, voltou para casa. Olhava o video-game, o controle quebrado. Não podia jogar.

Foi até a locadora alugar um filme. Nada que já não tivesse visto. Foi caçar algum clássico tosco e acabou voltando pra casa com Arrebentando em Nova York, estrelado pelo Jackie Chan. Assistiu o filme até a cena em que o protagonista é agredido por uma gangue, que jogam garrafas de vidro contra ele. Foi dormir.